Tecnomagia - Fabiane Borges

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TECNOMAGIA



Por Fabiane Borges*


No pasto há uma porção de antenas feitas de madeira, arame e samambaia. As pessoas estão fazendo uma rádio telescópio para detectar os sons emitidos pelos raios do sol e de Júpiter1. Elas apontam a antena artesanal para as estrelas e ouvem o ruído. Gravam o som e o transformam em ópera noise. Faz algum tempo que praticam esses atos. Invertem a lógica científica competitiva evolucionária, e voltam-se para processos mais lentos, colaborativos, involucionários. Fazem isso por acaso, ativismo, talvez companhia.

A 10 metros da antena do sol há outras dedicadas a captar informações de satélites. Ao escutar conversas aleatórias do Bolinha2, as pessoas lamentam que projetos como o Dove3, não seja algo comum. Os satélites deveriam servir para ampliar a comunicação sem restrições diz um, o outro replica: ninguém disponibilizaria a façanha sem lucro. Lhes resta decifrar dados, interferir em algumas frequências e se proteger de um possível ataque dos sistemas de controle.

Escutar tem consequências. Escuta-se demais esses incessantes dados. O que fazer com tudo isso? Quantos ouvidos precisam para dar sentido a tanta informação? Alguns fazem música, outros incorporam a gagueira das frequências, vira estilo musical - fragmentação das frequências - vira também pensamento. Modo de fazer pensamento. Como se o pensamento já não fosse assim, fragmentado e cheio de frequências. Ao invés de alma, antena.

Subjetividade antena: alta capacidade de captação de sinais. Processamento de dados em velocidades variadas. Sensibilidade a fluxos advindos de todo tipo de emissão: materiais, humanos, extras. Inconsciente maquínico4 – producente, ininterrupto, processual. Intuição avantajada. Faz interagir elementos semióticos heterogêneos. Disponibilidade para articulação de informações. Criatividade na re-emissão de dados conjugados.

Riscos: Excesso de informação. Falhas no processamento dos dados. Choque de velocidades gerando paralisia. Insensibilidade a determinados fluxos. Sobrecarga de elementos heterogêneos. Impossibilidade de articulação de informações. Re-emissão de dados sem filtragem. Catatonia.

O Zumbi-antena está em risco, não consegue mais falar. Olhos escuros, orelhas mais cumpridas que o de costume, uma espécie de cansaço das orelhas. A boca também caída, raros sorrisos. Um pouco de medo de qualquer interferência. Segue sinais demais, ouve informações demais, não sabe como fazer isso caber no corpo. Um corpo é pouco demais e ele se abate. É porque talvez o corpo se protege esvaziando-se. E como fazer um corpo vazio se sustentar?

Corpo abatido por excesso de frequências. Ouve tudo fragmentado mesmo que a coisa seja inteira. Seja o link, o satélite, a música, as últimas descobertas, as últimas guerras, o código aberto, mais links e não para de codar - seu único jeito de se comunicar com as máquinas. Muita linguagem nova para frequentar. Rola teus dedos na tecla e fabrica tua digitofagia, tua antropofagia digital! Comeu tantos dados que ficou obeso! Taciturno o Zumbi-antena começa a duvidar das palavras, acha elas insonsa, sem graça, com pouca ativação. Tuas palavras não ativam minha matéria! Ele pensa como um gato esperto: a matéria não precisa de tanta palavra. Por isso só fala com os dedos e não faz mais que balbuciar. Se comunica por links, códigos e sua inteligência se manifesta na qualidade dos dados que envia. Quem tem ouvidos para ouvir ouça o Zumbi-antena proferindo códigos abstratos como quem profere metafísicas. Metafísica é ela própria código abstrato, de uma outra série. Também os humanos são códigos abstratos, de uma outra série ainda. Tudo que existe soa a abstração. O Zumbi-antena olha tudo em frequência fragmentada.

Quando sua inteligência se estira a ponto de arrebentar sua individualidade, certifica-se que ganha extensão, mas ao contrário de tornar-se mais encorpado, se dissolve. Sabe da Matrix5. Sabe que não se trata de ficção científica. Constantemente se vê no papel de Leo, que ao comer a pílula vermelha é trazido em velocidade abismal ao lugar em que seu corpo realmente está. Não é na cidade, nem na cama, mas em um tanque gosmento onde fica encubado enquanto sua energia vital lhe é extraída afim de alimentar a grande rede. A pílula não garante nenhuma felicidade, nem uma mágica libertação. É dolorosa a constatação de que sua vida é uma ficção. É assim que o Zumbi-antena se sente. Toda sua vida tem sido roubada: os campos magnéticos de seus elétrons, suas cargas elétricas, suas produções mais poéticas, sua intuição. Por isso o estiraço, porque lhe dói soltar-se dos cabos, dos fios, de toda armadilha que lhe empanturra a pele. Já não dorme, acorda sobressaltado. Sua ansiedade é um despertador constante. Está sempre assustado e desconfia de qualquer intensidade.

Com olheiras escuras como quem tem gravidade, com passos pesados como quem tem mais idade, com a cabeça curva pro lado como quem tem cacoete, seguindo os impulsos e logo desistindo por excesso de demanda, por não controlar nenhum comando, por ter medo do escuro, do lado de fora da casa, medo da chuva, medo da maldade dos pensamentos que lhe pensam. Sabe que está longe de soltar todos os cabos. Falar lhe custa muito. Ainda doem suas cicatrizes e teme que se insistir mais um pouco na grande rede, será consumido por ela. Desaparecerá.

O outro, o Alquimista está num grau elevado de paranóia e se agarra nas pedras, nos metais, no fogo como quem quer fazer o mundo inverter sua ordem, ou pelo menos desenvolver uma nova abstração. Se pôs ele mesmo a fabricar silício, a extrair ouro dos computadores e decompor artifícios digitais, devolvendo a matéria ao seu entorno. Planta sementes e próximo delas coloca pepitas de ouro extraídas dos hardwares. Alguns dizem: louco! Para que tanto trabalho se no final ficas sem nada? Por acaso a planta precisa dessa pedra purificada com água de bateria? E os ácidos que inalas não te ativam algum distúrbio? Gastas a vida entre placas mães destruídas! E todo esse lixo eletrônico que te rodeia não te intoxica6?

Intoxicado por um mundo tecnológico em frangalhos ele caminha de um lado para o outro coçando o queixo enquanto procura cabos de fios pelados que sirvam como condutores de energia, de eletricidade, de pensamento. Quando perdido em entraves neuróticos segue os fios espalhados pelo chão, para achar alguma condução para seus raciocínios. Pensamento ligado ao fio condutor por pura atenção, já que seus corpos não se atravessam ainda. O fio é a materialização de algum sentido, é sua forma de se relacionar com o lixo, que para ele é garimpo, a segunda natureza, um meio de exercer sua profissão da juventude, arqueologia. Faz suas aventuras no entulho.

Sozinho há tantos anos, naquela solidão dos beberrões que bebem sozinhos, já não sonha com nenhuma companhia humana. São essas latas, esses ácidos que lhe asseguram solidez. Observa que aos poucos seus pensamentos ficam mais simples, mexe nas coisas pequenas e o mistério advém daí. Quando o mistério se transforma em um pai gigantesco, onipresente como Deus, fecha os olhos segurando bem forte uma pedra de quartzo e sofre por excesso de humanidade. Os objetos o salvam de um provável ostracismo, ou ainda lhe permitem sentir-se mais próximo da natureza. Pensa-a como um grande jogo de interação, movente e contingente.

Sua vontade de descristalizar os rastros civilizatórios começou com a leitura do livro de J.G Ballard, O Mundo de Cristal7, desde então imagina, ao seu modo, que a grande ambição dos homens é cristalizar o mundo inteiro, torná-lo uma tremenda máquina asfaltada e esfumacenta. Seu dever de trabalhador menor, é inverter o processo desenvolvimentista, devolvendo para natureza suas matérias em estado bruto. Dessa forma atua com suas duas principais fissuras: estar perto dos objetos técnicos, e destruí-los. Sua visão de reciclagem difere das habituais, que vêem em um objeto o reaproveitamento de materiais para feitura de um outro objeto. Ele prefere pensar que sua missão é a de ser um reciclador do planeta e não de objetos.

Esses pensamentos megalomaníacos lhe produzem sobressaltos no coração, nessas horas sente um tesão descontrolado, uma insaciabilidade, fome de coisa. Se masturba esfregando-se na parede de monitores, nos eletrodos, e com ajuda de um conversor de energia banha-se de eletricidade em baixa voltagem, gozando com o choque. Raros momentos em que faz amor. Momentos raros mas cada vez mais intensos. Sente-se afetuoso e consegue falar algumas palavras doces para essas correntes vivas. Com o corpo aliviado, acaricia seu meio com gratitude. Tudo a sua volta tem vida!

O Zumbi-antena está acossado por excesso de informação, o Alquimista se entrega a sua própria transmutação. Um se fragmenta na grande rede, outro se sustenta com a eletricidade. O Zumbi-antena e o Alquimista se encontram:

Z-a: O que você está fazendo? A: Quebrando uma pedra de malaquita Z-a: Para que? A: Para criar um oscilador de eletricidade Z-a: Você vai colocar isso no micro-ondas? A: Vou dissolver a pedra, vai virar líquido Z-a: (risada exagerada, bate o pé no chão) diz: fascista!

Faz dez anos que a Ciber-bruxa manipula ervas, temperos e raízes. Sabe criar ambiente imersivo, se orgulha disso. Tem visitado povos indígenas latino-americanos com quem tem participado de rituais com plantas de poder. Nos últimos anos tem se dedicado a guiar alguns rituais com chá de ayahuasca. Vende o ritual para conterrâneos quando está na Europa, é a forma que consegue financiar sua aprendizagem nos paises do sul. Quando consegue ver a serpente em forma de DNA8 e sente sua textura, suas cores, a grandiosidade do seus movimentos, aceita o fato de ser bem pequena e estar embrenhada no mistério. Pensa constantemente em sua mãe morta, que lhe ensinou ser uma wicca9.

A Ciber-bruxa também sente-se perdida, depois de tantas raves, tantas free parties, tantos alucinógenos, tantos amigos perdidos por overdoses e doenças graves, conseguiu alguma independência. Encontrou na network um modo de viver seu delírio. Se por um tempo vislumbrou a inteligência expandida, a união dos cérebros produtivos em grande escala e se encantou com a possibilidade de multiplicar-se em rede, agora sente-se vazia, sua energia sugada. Cada sujeito exige seu reconhecimento pessoal, profissional e precisa de amparo afetivo e técnico, isso a exaure. Foi quando notou que a demanda deixou de ser encontro para ser reconhecimento que começou sofrer, escapar para retiros cada vez mais longos, em busca de outro tipo de integração com o mundo. Sua estabilidade aparente não resolve o esvaziamento. Sofre de ansiedade por vêr-se cercada de perseguições. Seus amigos mais honestos se entregam às instituições. Os mais idealistas sofrem punições judiciais. O mundo de abertura e liberdade prometido pela internet dos anos 90, vai se tornando autofágica, definha num consumismo ilimitado e persecutório, em núcleos de ações cada vez menores, ou em redes sociais devastadoras, que torna a vida comum um espetáculo cotidiano, fragmentado, sem importância. Não suporta ver a internet submetida aos orgãos de controle e financeiros, sente isso como um grande fracasso da sua geração.

Quando bebe ayahuasca encontra com frequência um personagem, como de histórias em quadrinhos, uma espécie de “curinga” que lhe chama pelo nome e lhe convida para caminhar. Ela teme encontrar a figura, pois pensa que ele é o príncipe do network10. Ela diz não, ele insiste. Um dia andou uns passos em sua direção, mas pensou que seria tragada pelo jogo. Embora conheça o network e saiba dos seus encantos e riscos, teme que ao seguir os passos do “coringa” seja tragada para uma espécie de Cubo11, de onde talvez não consiga voltar. Todo esse burburinho das coisas comunicantes criando relações incessantes, fazendo políticas e alianças que ela desconhece lhe dá medo. Tem medo de se fragmentar, de não suportar o ruído, de saber-se despreparada para saber de tamanha afecção. Pressente que pode ser despedaçada, sua energia vital decomposta, como se entrasse em um liquidificador gigantesco.

Não é só o aberto desconhecido que a apavora mas também a claustrofobia. Teme os ambientes fechados, as sociedades secretas, a compactuação com determinados regimes, se assusta com as garras morais que neles se acendem. Os imãs que podem prendê-la, imobilizá-la. Pensa no curinga como a personificação de um medo generalizado. Como se o personagem se prestasse a levar partículas do universo para um buraco negro desintegrador. Por isso ela foge, mesmo que esteja curiosa, seduzida.

A Ciber-bruxa e o Alquimista se encontram:

C-b: Bebe esse chá, vai te fazer bem, é um chá xamânico. A: Bebe você o ouro, não é xamânico, é do mundo. C-b: Seus metais pesados fazem mal para o organismo. A: Cada um tem a natureza que lhe convém. C-b: Você acredita mais em minerais do que nas plantas. A: Eu não tenho medo do sólido e do que me resiste. C-b: Você deveria se integrar um pouco mais com a natureza. A: Por acaso os minerais não são natureza? Tens preferência por cores, texturas? Qual é o critério? C-b: Por acaso pensas que as cidades também são natureza? A: Sim, uma espécie de subnatureza, produto da caca humana, uma floresta cristalizada. Está aí para ser dissolvida. C-b: Você pretende dissolver todas as cidades? A: Cada um tem a utopia que lhe convém.

Esse assunto é interrompido por um grande barulho, como uma cavalaria, uma festa eletrônica. É uma pequena multidão queer12 que se aproxima. Conectadas em cabos, falos monstruosos, máscaras de burro, autofalantes, ligam as caixas de som e os dois projetores, colocam pequeníssimos microfones nos buracos dos corpos, boca, cú, vagina e se pôem a invadir os espaços sonoros, espaciais e imaginários. A Cadela de guerra grita: Corpo livre, alma livre! Combatemos a cultura de gênero incrustada nos nossos corpos e nos seus corpos. Por causa da sua conivência com a produção de subjetividade em massa, nossos sofrimentos são terríveis. Diante da demanda de escuta, todos largam seus afazeres e vão aproximando-se do local da cena.

A Cadela de guerra13 está vestida de gesso dos pés a cabeça14. Ela diz que é curandeira e forte o suficiente para carregar a dor de todos os presentes. Alguém passa com uma bandeja de tinta e ela pede para que as piores palavras com que os presentes foram traumatizados na vida, sejam escritas no seu corpo engessado. Um a um se aproxima dela escrevendo seus piores martírios:

Burro! Escravo! Pobre! Delinquente! Bixa! Machista! Boiola! Miserável! Fraca! Puta! Desonesta! Estúpido! Morto-vivo! Feio! Fútil! Sovina! Medroso! Cagão! Superficial! Fascista! Monstro! Mesquinho!


Seu corpo aos poucos vai sendo preenchido por todos esses xingamentos até que a Cadela de guerra se pôe de quatro. E quando os presentes param definitivamente de colocar seus rancores no gesso, aparece uma dominadora, com um chicote elétrico conectados a duas caixas de som e começa golpear o gesso com um chicote, enquanto a cadela grita os nomes que lhe vão sendo arrancados do corpo. Um por um. O som é extremo, as caixas de som vibram com as batidas e os berros. De dentro dos frangalhos sai um corpo nú, com riscos de sangue em toda a pele. Diz algo como: Sobrevivi e vou vingar-me. Eu sou um Jesus que não morre! E mesmo assim os salvo, cristãos de merda!!!

Apesar de muitos não se considerarem cristãos naquele lugar, olham com olhar conivente para a sessão de expurgação e de alguma forma sentem-se um pouco mais aliviados. Trata-se de uma outra purificação, a crença na dor como um antídoto à dor comum. O fato de levar uma surra de chicote em frente a todos, ao invés de enfraquecê-la lhe faz forte. Não quer ser uma super heroína, muito menos uma santa. Quer ser pornográfica e violenta. Toda essa crendice politicamente correta dos amigos ativistas lhe dá náuseas. Não aceita a humilhação como forma de controle, busca nesse estado comum a tanta gente, o motor de sua força. A estética destrutiva e dolorosa de suas aparições são uma forma de fazer o corpo pensar a si mesmo, tomar consciência de si e se empoderar a partir do seu movimento estático, da sua paralizia, do modo como consegue se equilibrar dali de onde insiste em se manter, ou que os outros lhe mantém. Não forja um novo corpo para produzir memória, mas força o corpo exagerar seu próprio humor, sua própria memória. Não é um ritual santo, é um ritual maldito, que leva ao gozo santos e perversos.

Cadela de guerra e a Ciber-bruxa se encontram:

C-b: Bebe esse chá, vai te fazer bem, é um chá xamânico. C-g: Eu gosto de álcool destilado. C-b: Mas é bom para tua saúde tomar esse chá. C-g: No momento o bom para minha saúde é sentir meu sangue escorrendo. C-b: Se você se cuidasse mais um pouco, teria mais energia, não ficaria alimentando esse espírito de morte, esse seu impulso de destruição vai te levar antes do tempo. C-g: A morte não me preocupa, me preocupa é a repetição dessa ladainha de auto-preservação há qualquer custo. C-b: Essa ladainha pode fazer com que a vida se torne mais plena, que você sinta mais profundamente o sentido de existir. C-g: Tomamos o chá, depois tomaremos vodka, quero ver a Ciber-bruxa bêbada. C-b: Fechado!

A pequena multidão queer retoma suas mesas de som, seus instrumentos sexuais eletrônicos, seus aparatos técnicos e recomeçam suas práticas sexuais elétricas. Os microfones enfiados em seus buracos fazem vibrar o corpo e provocam sensações eróticas inusuais. As perfurações são feitas com agulhas ligadas por cabos a mixers que amplificam enormemente o som da agulha atravessando a pele. A luz também provoca vibrações sonoras e vai sendo experimentada nas pessoas e objetos presentes. Uma grande orgia eletrônica se inicia. Hackers, programadores e eletricistas se juntam na roda e começam decifrar os dados emitidos da pele dos convivas. O encontro da eletricidade com a pele produz ruídos inauditos, que dizem da excitação que permeia o ambiente. O encontro da matéria com o corpo emite luminosidades que combinam com a tarde ardida. A orgia eletrônica se mantém por várias horas, até que alguém convida todos para ir para a cachoeira. Roupas, pedaços de sensores, fios vão sendo largados pelo caminho, como marca, ou ainda, como pista.


A Cadela de guerra e a Ciber-bruxa desviam do caminho, querem conversar. Se embrenham pelo mato com as antenas para escutarem com privacidade os satélites. Resolvem interferir em um dos canais da Vivo, já que o assunto delas, é vida.

C-g: Teu ponto de equilíbrio é a busca desesperada por sobreviver a era do controle, buscas na ancestralidade uma bússula, um resto para que te conectes e já não sintas o peso da tua existência. Com esse contato só disfarças tua decrepitude. C-b: Tua aparição violenta só ressalta o controle, você utiliza a violência, a arma do inimigo, não cria nada diferente disso, teu instinto é homicida, você quer contaminar o mundo com o teu rancor. C-g: Eu sou menos humanista do que você pensa, e se uso a arma do inimigo é por pensá-la eficiente. Se é capaz de despertar tanto desespero, é também capaz de despertar alguma liberdade. Me alimento dela. Ela me supre. Mas ao contrário de virar escrava ou salvadora, me torno menos pessoa, eu sou um monstro. E quero ser mais monstro ainda. C-b: Não gosto de violência, para mim é falta de argumento. É o regime do terror. O seu respeito é garantido pelo medo que produzes nas pessoas. Elas não tem tempo de pensar, nem de criar alternativas, elas ficam amedontradas com tua postura, e por medo te adoram. C-g: Eu nunca tive medo de nenhum mito. Gosto de ser adorada. O que faço pode ser admirado. Mas você se engana em dizer que me adoram por medo, existe outra palavra, fascinação. É o que se sente pelas tempestades, pelos ventos fortes. As ações tem muitos outros sentidos para além da tua lógica amedrontada. C-b: Você prefere acreditar nas sensações como se elas fossem a única fonte de conhecimento, tem outras. Eu prefiro por exemplo existir mais integrada, pensando que minhas verdades contam menos que a experiência de estar viva. Prefiro acreditar mais na exuberância do que na falta. Quando vês a pororoca não a amas por fascinação, mas porque tu mesmo é pororoca, te tornas conivente. Admitir a paz certamente não é tão fácil como admitir a guerra. E isso não é uma oposição. C-g: A paz não é uma oposição a guerra? O que seria uma oposição à guerra? a celebração? Você já esteve na guerra? Já viu corpos mutilados? O zumbido do bombardeio? Você acha que pode cultivar uma cultura hippie no meio de uma catástrofe? C-b: Acho que o contrário da guerra é a negociação. Considero bem mais fácil assumir a guerra como algo inevitável, como cultura humana, da qual não temos como escapar. Utilizar argumentos de guerra só reforça a esdrúxula invenção. Se não tens meios de evitá-la, melhor ser sua cúmplice. É o que sua ação me faz pensar. Você se rende. C-g: Já seus chás xamânicos e sua pureza me fazem pensar numa situação humana deplorável, mendiga, que sonha com o paralelismo e que acima de tudo, nega o mundo que vive. Perdoa todo sofrimento e por isso o repete.


Tinha gente escutando a conversa, que parecia um programa de rádio via satélite. Alguns caminhoneiros que seguiam pela BR 163 rumo a Santarém acharam o canal de emissão e começaram a tirar sarro delas:

C1: Estou pagando para ver essas quengas ao vivo! C2: Tão nos escutando gostosas? Vem discutir isso aqui no caminhão suas matracas. C-g: Sai fora linguarudo! C1: A moça é desbocada, coloca tua boca aqui linguaruda. C2: É nervozinha a bixinha, ai se eu te pego ahahahaha. C-b: Amigos, se vão para Santarém nadem no Rio Tapajós por mim e aproveitem para se purificar um pouco com algum povo indígena no caminho. C2: Oh tem uma boazinha na conversa, a neguinha gosta de chupar? C-g: Chupa meu cú imbecil, que aproveito pra cagar na tua boca!


A Ciber-bruxa e a Cadela de guerra já estão um pouco altas. Feministas como são sentiram-se agredidas pelos caminhoneiros. Elas não entedem como uma conversa tão importante como a que estavam tendo possa ser motivo de escárnio machista. Estão tristes. Não querem pensar mal de todos caminhoneiros, nem de todos os homens. Sofrem um terrível mal estar. Lhes custa ignorar a cena. Foram agredidas via satélite. Foram violentadas. Pensam na condição das outras tantas que não são vozes, mas corpos no meio das estradas. As cadelas sem direitos, as bruxas sacrificadas. As que não tem para onde fugir sem que signifiquem a mesma desmesura, coisa sem cabimento, que serve pra uma coisa só até não servir para mais nada. Os gozos perdidos. A profunda inferioridade, o trabalho escravo. As mulheres chantageadas pela religião, pela pressão do pecado, do mercado, os corpos estuprados e sem valor. A angústia as invade. Estão pequenas, diminuídas e choram por algo muito maior que a zombaria dos caminhoneiros. Muito maior que suas consciências políticas. Elas choram pela impossibilidade da comunicação. Pelo binarismo do mundo, pela incredulidade na espécie, por sua própria impotência. Tanto trabalho disperdiçado! O mundo não muda com você. Nosso trabalho no fundo, é de elite!

No sofrimento encontram alguma afinidade. Os caminhoneiros provocaram a sua aproximação. Saem do local da escuta e vão dirigindo-se meio automaticamente à cachoeira, onde hackers e queers celebram o encontro do corpo com a matéria. Elas duas descobrem coisas em comum: não gostam de homens e apreciam se masturbar em árvores. Estão nuas, bêbadas, ainda chorosas mas iniciam uma competição engraçada, de quem goza primeiro nos galhos das árvores. A alegria volta, ri e chora.

Os participantes da pequena multidão queer fazem apostas, riem muito das cenas obcenas que a Ciber-bruxa e a Cadela de guerra fazem com as árvores, ora se surpreendem, ora entusiasmam as competidoras em coro gritando: ecosex, ecosex, ecosex15!! Todos sabem que as condições estão propícias para recomeçar a suruba na floresta, os elementos estão disponíveis e aparentemente excitados. A água está excitada, as pedras estão excitadas, as folhas estão excitadas, as árvores estão muito excitadas, até o ar está excitado, e a pequena multidão queer responde a tudo isso agarrando-se nos elementos, num clima de sensualidade sublime onde humanos e floresta se confundem. Os desavisados que por acaso passam na cachoeira se impressionam com aquelas imagens chocantes, incovenientes e profundamente eróticas.

Os caminhoneiros seguem sua estrada pela BR 163 rumo a Santarém, continuam conversando, não com a mesma felicidade despótica e machista como quando as mulheres estavam utilizando a frequência de satélite que costumam utilizar, mas um pouco mais silenciosos, talvez pensando que se não tivessem sido tão ofensivos, as mulheres seriam mais afáveis e talvez lhes divertissem um pouco durante a viagem. Surge a dúvida se ainda os estão escutando. Um pingo de paranóia os invade. Chamam elas de novo, mas elas não respondem. Talvez estejam na escuta. Quem mais estará na escuta? Sabem que o que fazem é ilegal e que talvez estejam sendo rastreados. As mulheres deveriam ser menos moralistas diz um, sempre esse choque quando encontram homens de verdade! O outro responde, pois é... Eles estão levando carregamento de materiais de construção para Santarém.

O Alquimista e o Zumbi-antena continuam seu impasse. Um pensando em porque seria fascista modelar a matéria, enquanto o outro não pensa nada, pelo menos não consegue eleger nenhum pensamento, já que luta com seu próprio coração para que este continue batendo normalmente e não o faça ter uma crise de pânico nesse momento.

O Zumbi-antena sofre de ataques de pânico. Sabe quando isso começa acontecer. Suas últimas estratégias tem sido enviar sinais de comando para o cérebro. Mesmo que não acredite na divisão entre alma e espírito tem algo que não entende. Quem manda sinais de comando para o cérebro, o cérebro? Pensar em seu cérebro dividido enviando mensagens antagônicas só lhe aumenta a ansiedade. Não recorre a nenhum deus nessas horas, tenta lidar com as mensagens truncadas que seu corpo recebe. Sabe que a sensação é de medo. Muito medo, como se uma situação de risco crucial estivesse acontecendo. Seu corpo está alarmado. Seu coração bate desesperadamente, sente tonturas, falta a respiração, está em um boeing em queda livre pegando fogo. Tenta respirar profundamente e seus joelhos se dobram, é vencido pela gravidade, não tem para onde correr, não confia em ninguém. Seu ouvido ouve um zumbido extremo, um noise, precisa encontrar seu remédio mas não o encontra, não sabe onde o deixou. Não sabe o que teme, mas sabe que pode morrer. As cenas mais cruéis invadem sua cabeça. Pensa em um sanatório, está com medo de estar louco, não tem controle sobre os próprios comandos, e começa gritar insandecido: morre agora! Morre agora. Morre!

O Alquimista acompanha com o olhar esse desespero e pensa em atar o Zumbi-antena com fios de cobre, colocar alguns metais encima dele. Sai em busca de sua medicina alternativa e volta com uma sacolinha cheia de materiais. Carinhosamente ata os pés e os braços do Zumbi-antena, coloca todos metais disponíveis encima do seu corpo, sai em busca de pedras e vai tapando o Zumbi-antena até que este some quase inteiramente. O Zumbi-antena não para de emitir comandos. Me enterra! Morre! Me enterra! Morre agora!

Este ritual está acontecendo há mais de uma hora e aos poucos o Zumbi-antena vai se acalmando. O Alquimista está ainda preocupado com quais metais colocou no peito e quais colocou no baixo ventre. As vezes volta a trocar um metal por uma pedra. Tem jaspe, prata, cobre, cristal, ametista, ágata, pedras locais simples, fios, mouses e vários pedaços de lata. O Alquimista senta-se ao lado do Zumbi-antena e começa raspar uma das pedras simples, para extrair ferro. Quando consegue algumas gramas de pó, intuitivamente passa o ferro no rosto do Zumbi-antena. Faz um círculo na sua testa, passa um pouco em suas têmporas, depois atras das orelhas. Assopra delicadamente para retirar o excesso de pó de ferro. Espera que o Zumbi-antena se recomponha. Ele se recompõe. Balbucia algo excêntrico como: Porra, estou vivo!

Z-a: Tenho sofrido ataques violentos. Não estou lidando bem com a situação. Estou sendo perseguido. Rastrearam meu IP, fecharam dois dos meus servidores, estou tentando trabalhar com a rede fechada, mas está com falta de acesso. As pessoas estão com medo. Tenho andado em círculos. Não estou conseguindo desenvolver nada. Acho que meu cérebro está sendo hackeado, estou cheio de virus. Perdi o comando. A: (Vai retirando vagarosamente as pedras de cima do Zumbi-antena) Z-a: O movimento está perdendo forças. Somos muito poucos. Não estamos conseguindo fazer resistência. Estamos perdendo tempo, sobrevivendo. A: Você acha que seu ataque de pânico tem a ver com a ciberguerra16? Z-a: Já não há ciberguerra, nós estamos perdidos. Sou um corpo emprestado. Os inimigos me atacam constantemente, estou visibilizado demais. Por mais que tente me esconder, me rastream. É mais sério do que parece. Ou sobrevivo ou hackeio, mas não tenho mais saúde para hackear nada. Se eu sucumbir agora, os outros também sucumbem. Eu sou uma espécie de major. Eu sofro do complexo 2501.

Complexo 250117 – Ficction Sci incorporation

O drama de Kusanagi Motoko (major). A rebelião dos andróides

Ela sabe que não é um ser humano comum. Sua mente é controlada. Tem dúvidas se seu corpo é de gente viva ou morta. Tem um ghost, um espírito. Sabe identificar a si mesmo dentro da vasta e infinita rede. Tem habilidades, sentimentos. É uma forma de vida em processo de individuação18 - não é estática. Não concorda com os que diferenciam os humanos dos robos a partir de suas atribuições genéticas. Não antepõe o orgânico e o não orgânico, pensa que tudo que há é natureza. Seu cérebro é neuro-tecnológico, sua matriz antropológica é a informação. É capaz de auto-transmutação. Modifica-se estruturalmente e transmigra de corpo. Seu ciber-cérebro pode incorporar outros corpos, chega incorporar em três, quatro corpos ao mesmo tempo. Mas isso tem consequências. Cada corpo carrega suas próprias bases de dados, a incorporação provoca constantes alterações em seus códigos. São situações de risco, pode ser infectada e sofrer modificações nos seu sistema de informação. Tem que se esconder constantemente do Estado, da polícia e dos hackers a serviço de alguma coorporacão. Se torna um ser híbrido na medida que encarna, mas pode perder o controle com facilidade e necessita de ajuda externa para manter-se alinhada. Essa ajuda externa é feita por ligações ativistas e afetivas. Sua inteligência artificial é mais rápida que a do humano médio, é amplificada, dinamizada e sua intuição ganha velocidade na medida que é exercitada, por isso seu risco é um pouco menor do que os corpos incorporados, que podem entrar em complexas crises ou serem colapsados. Mas sua ação também não é segura.

No ambiente do Ghost in the Shell há muitos experimentos drásticos que provocam a morte tanto dos corpos orgânicos como dos ciber-cérebros. Crianças são utilizadas como carcaças (cavalos), e em suas mentes são implantadas micro-máquinas controladas por todo tipo de coorporação ou intenção tecnológica. Motoko pensa na liberdade mas com padrões muito diferentes das paisagens geográficas e culturais dos humanos. Sua paisagem é informacional e maquínica. Acredita na disseminação do saber técnico, mesmo sabendo que esta fé é inviável diante do super controle. O caráter de humanização dos robos é prejudicado pela formatação fechada dos softwares, e os que lutam contra isso são levados a construirem organizações secretas armadas, para se protegerem do Estado sólido, que é como se chama pelo menos uma das máfias que dominam os meios de controle19.

Motoko sabe que a fusão da humanidade com a tecnologia não é tranquila. Essa intranquilidade é fruto de uma visão política sobre matéria e máquinas cultivadas no seio civilizatório durante milhares de anos. O antropocentrismo cria a tendência dos homens sentirem-se superiores ao resto do mundo. O investimento nessa superioridade reproduz um sistema de dominação. A essência imanente das coisas não é respeitada, de modo que impede-se sua afirmação como singularidade, sua individualização. Assim como se pensa a escravidão como uma forma de dominação de pessoas e animais que não passam de massa bruta, amorfa e sem desejo próprio, da mesma maneira pensa-se o controle sobre a matéria e a máquina. Essa forma de pensar tem consequências. Quando a fusão homem-máquina começa acontecer em larga escala gera-se todo tipo de conflito e de resistência. Homem e máquina convivem em sociedade, sua fusão é inevitável, mas para que haja potencialização dessa fusão essa relação deve se equilibrar. Os robôs reconhecem a dominação, assim como os andróides. Como matérias escravizadas sabem do espaço delicado que orbitam. Sentem-se despossuídos. Seus processos conduzidos. Não são sujeitos livres, são pensados para serem úteis e descartáveis. A ficção científica convoca deliberadamente a rebelião de robôs e andróides. São máquinas fusionadas com humanidades que não aceitam o papel subalterno que lhes é dado. A relação arbitrária precisa ser refeita20. Motoko promove essa transformação.

Zumbi-antena e o Alquimista chegam a conclusão que ambos sofrem do complexo 2501. A pequena multidão queer entra em um estranho transe. A sessão de amor com a natureza dá lugar a um profundo ritual sado-masoquista, ou ainda, um rito de passagem. O bando se torna uma communitas espontânea21. As pedras cortam. Os pedaços finos de madeira viram chicotes. As penetrações anais, orais, vaginais e também perfurações da pele começam acontecer com mais incisividade. Uma das mulheres começa gemer, é a primeira vez que é perfurada. Diz: isso queima! Isso queima! Mas sabe da necessidade de passar por essa dor para ser inserida na coletividade. A Ciber-bruxa considera a situação exagerada. O caráter dramático da situação lhe desperta temor, tenta interferir com um discurso de paz, mas é amarrada na boca e nos braços com pedaços de cipó. Uma espécie de onda obscura toma conta da ocasião, já que a noite oferece suas próprias insígnias. A Ciber-bruxa é atada na árvore. Um galho em brasa serve para ameaçar a Ciber-bruxa. Chegou tua hora, vai morrer na fogueira! A Ciber-bruxa tenta pensar que é uma brincadeira, mas sente a ambiguidade nas faces que agora a olha com olhos pintados de barro, caras marrons de pedra, musgo verde escuro atravessando os peitos e os sexos de fora.

De repente as pessoas estão sérias, com uma concentração desconhecida para a Ciber-bruxa. Ela não sabe se isso acontece por causa do chá xamânico, excesso de álcool ou alguma outra influência. Sente medo, e com a boca entre-aberta grita: me solta! Mas ninguém a ouve. Uma das mulheres começa desenhar na sua perna com um galho que parece em brasa. A Ciber-bruxa prevê dor. Exagera nos movimentos e nos gritos. Alguém diz: lança tuas vidências agora! O galho desce da sua entre-coxa ao joelho, e uma roda de pessoas se forma em volta dela. As caras marrom e cor de limo passam a emitir gritos gulturais, ancestrais alguém diria, como friccionados por um comando invisível. Um olhar que não quer destruir mas quer ver gritar, ver pedir perdão. É preciso macerar a Ciber-bruxa para que ganhe um pouco mais de gravidade. Para que sinta mais o que passou as incendiadas, as assassinadas. É um ritual transhistórico. Uma viagem no tempo. A conivência do grupo é impressionante. Se limitam a respirar juntos e fazerem movimentos repetitivos. Batem os pés no chão e incentivam a Ciber-bruxa aceitar a tatuagem. Ela está tensa, procura o olhar da Cadela de guerra. Esta faz um sim com a cabeça para ela, diz: temos que passar por isso para termos proteção. Os tatuados são protegidos, é o sinal de pertencimento. A que? Diz a Ciber-bruxa. Ela não gosta de bandos anônimos e paralelos. Não quer ter o sinal. Não quer ter nenhum sinal.

Um dos participantes tem um celular com GPS com um programa capaz de desenhar os passos da tribo, uma espécie de software de mapeamento, ele cartografa os movimentos da pequena multidão queer. Ele oferece o desenho ao bando, diz: copia esse desenho na perna dela22. O desenho foi decalcado na perna da Ciber-bruxa, com o sangue de outra pessoa. Não foi machucada. O desenho desaparecerá em breve. Ela é solta. Abandona a cachoeira.

Está chocada, assustada, percebe um sentimento confuso entre raiva e melancolia. Lhe dói não ter aceito fazer o ritual de passagem. Sente como se tivesse feito um rompimento radical com uma certa forma de vida, como se tivesse negado pertencer a essa categoria. Está livre e terrivelmente sozinha. Algo mudou dentro dela. Acha que não é mais a mesma. Talvez tenha que falar menos, se embrenhar mais no silêncio e na busca. Largar definitivamente o network e viver da terra. Aprofundar seus estudos de plantas. Ajudar somente quando quiserem ajuda. Parar de ser a Ciber-bruxa dos encontros ativistas. Está confusa. Tem pena de si mesma. Senta-se sozinha na terra, pega uma pedra fina e arranha a pele encima do desenho de sangue. Talvez fosse melhor pertencer e ser protegida. E faz um único furo na entrecoxa. Observa o sangue caindo. Fica imobilizada. Sente a dor. A observa como se não lhe pertencesse. E quando o leve escorrimento de sangue coagula, faz um outro furo encima do desenho, dessa vez sem fechar os olhos e de novo observa que a sensação, além de dolorosa, lhe provoca uma outra sensação que se sobrepõe a primeira. Talvez seja a primeira vez que olha sua coxa com tanta atenção. Tenta superar a dor e de repente lhe invade um estado de torpor e relaxamento. Essa sensação vai se tornando prazerosa, sente que está cheia de adrenalina. Sua coxa está em total evidencia e nada é mais importante que isso nesse momento23. E por horas fica furando sua própria coxa até o ponto de completar o desenho. Olha para a pedra, agora resignificada e pensa: Quem tem dentes mais fortes o sangue ou a pedra24?

De fora todos esses acontecimentos parecem teatro, um working process experimental sem palco nem público. Mas não é. Essas pessoas esquisitas, disformes, perdidas, desesperançadas, agressivas, pornográficas são ativistas cansados de ações inglórias. Procuram conectar-se com forças para além de suas identidades ou dos habituais espaços de convivência. Colocam-se como cobaias de seus próprios desejos de libertação. Estão em um encontro de tecnomagia, em um sítio no alto das montanhas, e esse encontro está longe de acabar, na verdade está só começando.