Milena Durante

De wiki da nuvem
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Descrição do projeto:

Exercícios discálculicos – ou "Perdida".

Inventar uma auto (e baixa) tecnologia para lidar com questões e dificuldades de localização no espaço urbano através de pequenas experiências, tentativas, exercícios e conversas com outros participantes e residentes, exercidas no espaço rural. Todas essas realizações serão registradas em forma de texto, diários e desenhos, talvez gravações de áudio.

[Possuo uma dificuldade de localização no espaço – em especial no espaço urbano – que é comum a algumas pessoas e por vezes é chamada de cretinismo geográfico, dislexia espacial ou discalculia, essa última mais ligada à relação de coordenadas e também à matemática e aos cálculos. Essa disfunção atrapalha a vida em muitos graus e âmbitos e eu gostaria de criar exercícios e práticas pra lidar, pensar e propor novas aproximações e tentativas de criar pequenas possibilidades de reconexão com o espaço através do contato com marcos e referências diferentes daqueles existentes no espaço urbano, uma conexão com as possibilidades dos espaços de mato e seu afastamento do cálculo, da geometria e das coordenadas, tentando criar referências subjetivas e orgânicas de localização.]

Possibilidades de exercício:

1)	Caminhadas cada dia mais longas seguidas de registros;
2)	Experiências com pontos de referências orgânicos;
3)	Desenhos de mapas e cartografias do local, da casa e do entorno;
4)	Gravação de conversas e entrevistas com outros participantes acerca de suas próprias experiências com o assunto de localização espacial, entre outras a serem desenvolvidas ao longo da residência.


{Link da música "Perdida" do Trio Los Panchos.}

{Foto do céu da nuvem}


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01.01

Madrugada de 31 de janeiro para 1 de fevereiro.

O caminho de Resende pra cá foi de amanhacer, cheio de estrelas e conversa de mulheres na rodoviária esperando o ônibus Resende-Maromba que passa rapidamente pelo ponto-estacionamento, um ônibus de linha. Lá dentro um horizonte quente e vermelho se desenhou por uma hora e meia sem amanhecer completamente. A certeza de alguma coisa me tomou nesse caminho todo, duvidosa, enquanto algumas escadas muito íngremes e estreitas de cimento, com corrimões talvez na altura do peito ou mais, subidas de pirâmides maias, e um cubo de cimento de um metro de lado, eu imagino, onde caberia uma única pessoa como se estivesse num púlpito me chamam a atenção. Imagino permanecer ali nas escadas ou naqueles cubos de cimento sem sentido pra minha ignorância, qual seria a sensação, aquela estranheza de cimento para chegar onde no meio do mato? E me vem a imagem de alguém dizendo e lendo coisas para público nenhum, para a grama. Um lugar para se fazer um discurso para o mato.

Chegando, fiz meu primeiro reconhecimento da casa, dando uma volta mais ou menos redonda no entorno. À volta da casa, alguns metros de grama apenas e um riozinho que passa se escuta até dentro de casa. Não há o campo aberto que eu esperava por ter visto em outras fotos, eram de outro lugar, do encontro dos satélites. Entendo que aqui, para se perder, vai ter que ser sério.

{Foto que a Maíra tirou, eu andando no rio}

Fomos ao mercado. O caminho é uma linha reta subindo. Sinto que não há como me perder aqui a não ser que seja de verdade; não há como se perder um pouco. A volta parece muito simples, só que tudo isso acompanhada das pessoas que sabem o caminho. Amanhã faço esse caminho sozinha e vejo se é isso mesmo.

Amanhã serei o guia, ninguém vai cuidar de nada. Onde nasce o sol? Onde se põe? Descobrir tudo isso também. Não sair daqui sem isso.
Encontrar.

" Não se reportem a mim, por favor, caso contrário estaremos todos perdidos, não apenas eu. Não apenas eu. E então, logo, tudo estará perdido, sem mundo, não se reportem a mim, não me perguntem, não me sigam, eu também estou perdida."

Tem algo acontecendo em sete dias que quase se quer de si que se acenda uma vela, que quase se quer dos outros alguma coisa. Tomo um banho de arruda? Saio perdida por essa casa? Eu já sei onde é o banheiro e o quarto. É como se chegasse aqui e agora que posso e devo usar essa falta de senso de direção ela me falhasse, também nesse momento, quando se a quer, ela não nos quer de volta. Ela só serve para ela mesma, quando quer. Quando não, atravessamos a zona sul, atravessamos a cidade e o estado e aqui estamos, sabendo exatamente onde. No Vale do Pavão.

Um micro bicho branco, todinho branco, o corpinho mínimo, o quase nada pronto, as asas e antenas parado todo flutuando por sobre o meu café, era tão leve que era, que pousava em cima do café como se fosse um chão lamacento em que às vezes afundava um pouco, em outras descansava parado, tentava sair quando começava a afundar mais, até que desistiu e ficou parado. Inclinei a xícara pra fora e o bicho veio pra perto de mim na borda, e quase saiu. Depois se perdeu e reentrou de novo no pântano de café. Tentei assoprar, mas do ângulo errado, afundou mais e tive que enfiar rápido o dedo dentro do café para salvá-la da morte, acho que era menina, parecia uma filhote de borboleta, uma pequena recém saída borboleta do estado larval, não poderia ser tão pequena, branquíssima de um bicho que não poderia existir. O dedo mínimo entra na xícara e por baixo do pântano entra e impulsiona pequena borboleta para fora. Ainda molhada no dedo mais um sopro de vida e sai voando em fases, graciosa, como se pulando de pedra em pedra no ar. Salvei um pequeno bicho, como a minhoca se salvou, existe uma salvação em minha cabeça-corpo querendo se colocar para o fora dos outros.

Acabei de ver um satélite pela primeira vez, passava como uma estrela que anda, quem me mostrou foi Denise. Na máquina do Bruno vi também, pela primeira vez tão de perto, Júpiter e quatro pequenas luas.

{Link da música do Metá Metá que não sei como se chama e não sai da minha cabeça o dia todo, o dia todo. Maíra pergunta: você não quer ouvir Metá Metá, não?}



02.02

EXERCÍCIO 1: sair no sentido contrário do mercadinho e andar uma certa quantidade de passos e voltar.

Resolvo sair de casa faltando pouco para a hora do almoço. A ideia é apenas começar logo e com alguma coisa, mesmo que seja simples, então o exercício é bem simples. Penso em andar cerca de 400 passos e voltar. Uma coisa rápida para ir fazer, voltar, tomar nota e almoçar com os outros.

A primeira dificuldade discálculica é de fazer vergonha. Não consigo ver como se fecha o portão. Nem de dentro, onde ainda estou e sei que vou precisar fechá-lo de volta. O portão que não sei como fechar nem como abrir exatamente. Sinto vergonha de pedir ajuda para as pessoas e procuro a Maíra ou a Denise com quem já dividi outras minhas aflições no caminho. A primeira pessoa que encontro é a Sara, que está concentrada fazendo algo e tenho vergonha de perguntar pra ela que é engenheira e parece estar sentada fazendo alguma coisa de complexidade e concentração.

Peço ao Rodrigo, que já havia fechado e aberto o portão ontem, no primeiro dia quando saímos. Subimos em direção ao portão e eu já me explicando e desculpando por esse pedido de ajuda. A primeira reação dele é dizer que ele também não sabe exatamente mas que faz de um jeito e me mostra como. A dúvida que ele põe ou a compreensão de que os jeitos podem ser vários desfaz a nuvem de ridículo de respiração acelerada na casa, andando para lá e para cá antes de ter coragem de perguntar com vergonha da minha falta de entendimento de engrenagens, combinações, entrecruzamentos, coordenadas e funcionamentos simples.

O objetivo é ir para o caminho que não fizemos ontem. Vou andando e pensando bem tranquila tendo na cabeça que não é possível se perder e no coração faço relações psciolgócias que se fazem e desfazem em metáforas junto à noção do espelho, do reflexo. As coisas que estamos trabalhando.

Começo a pensar e penso que consigo usar esse exercício para outras coisas, já que é muito fácil. Vou contando os passos. No começo conto cada passo e depois, sem querer, passo a contar uma vez, um número para cada dois passos. Não sei exatamente quando isso acontece, talvez enquanto passo pela pizzaria e tudo me parece tão familiar que vejo que talvez esteja indo no sentido do mercado e fazendo o caminho que já fizemos ontem. E, agora, pensando com certeza que o que me propus a fazer é fácil demais.

A ida é tranquila até chegar. Vejo que cruzo uma pequena bifurcação e não há como se perder, observo flores roxas como ponto de referência no muro de uma casa, passo um outro entrocamento, contra-mão. Até o mercado são 348 passos nessa contagem errática que ora conta um ora conta dois passos como total. Eram linhas retas não havia como se perder, havia apenas que pensar em metáforas e soluções, resoluções e lições de vida, salvamentos. Os pontos de referência, as flores roxas, as coisas todas que fui ignorando e a contagem para poder pensar e fazer essas relações pareciam absolutamente com o salvamento.

Chego ao mercado. Chego e fico sem graça sobre o que fazer lá, olho para as duas ou três pessoas bebendo na beira do bar e duas delas me olham de volta: uma mulher mais de longe e um homem à minha frente. Decido que voltar é o melhor a se fazer, o mercado foi o fim da caminhada.

Os dois me observam não entrar no mercado e eu sorrio amarelo-bebê de volta para eles e começo a voltar enquanto a mulher diz:

"Eu que sou boba, estou mais perto de Deus. Quem é mais inteligente está mais longe. As pessoas das capitais está todas mais longe e o pessoal daqui está mais perto."

Eu me identifico com ela e lembro da Clarice Lispector, pensando então que sou boba por ser perdida e devo então estar mais perto de Deus e que morar na capital pra mim não faz nem nunca fez mais esperteza.


Saí da casa, de primeira, já para o sentido contrário de onde pensava estar indo. Eu parecia saber e lembrar muito claramente que havíamos subido para a direita para ir ao mercado, mas se confundem e se destrocam todos de lugar como se eu tivesse passado em baixo de um timbó que não cortei e aí se inverteram todas as direções, ida e volta, direita e esquerda, cimo e baixo. Deveria lembrar que quando acho que é por um lado, geralmente é pelo outro e que isso em si seria um grande localizador, não fosse o fato de também falhar às vezes. E que, ainda que tenha certeza, posso estar errada. Quando eu de fato sei um caminho, é mais que ter certeza, já tive tanta certeza de coisa que não era. Quando sei um caminho, não tenho certeza, tenho o caminho.

Se na ida havia pensamentos demais, tranquilos e com eles eu aprendia lições de mim mesma, de análise, de como se perder e ficar sozinha são os fios de cobre e prata que eu não quero soltar e não querer se soltar é medo de sair flutuando do mundo como se fosse uma bexiga de hélio, como se pudesse, e que tudo isso tem a ver com querer manter sempre controle e acesso ao que está longe, a algum ponto de referência, alguma torre, na volta todo esse pensamento me parece uma falta completa de responsabilidade com minha própria condição e que se perder pode não ser ficar flutuando e sair do mundo mas que muito bem pode ser ficar vagando de lá pra cá e se cortar completamente dos fios que são todos os pontos de referência terrestres e que, ainda que tivesse andado menos de 700 passos, isso tudo poderia me acontecer de fato, consumindo muito tempo, energia, causando transtorno aos outros se me demorasse muito e desespero e vergonha a mim mesma, num gasto de energia enorme, virando a dor da discalculia um sofrimento prático desnecessário. Bem que o Brait disse: Milena, lá é mata fechada e eu prestes a me perder na estrada.

{Link da música da torre, talvez seja Sandra o nome, do Gilberto Gil.}

ida encontrar bucolismo na fala da mulher e me sentir ao lado dela mais perto do deus da clarice lispector na casa dos bobos no passo zero

volta não havia mais pensamento números contagem batimentos cardíacos medo sem fim de ter passado a contagem dos números a melhor coisa eles eram os fios que me prendiam a algum lugar

[lembrança Enquanto reescrevo esse diário e todos almoçam, eu me lembro de uma vez quando tinha doze anos e fiz a primeira viagem sem meus pais para um acampamento chamado Paiol Grande com meus colegas de classe e me perdi em algum momento de todos, não sei o que me distraiu e quando vi todos haviam ido. Ando para um lado, para outro e ninguém aparece, a não ser um gato, que se deixa acarinhar e me faz companhia. Volto para o lugar de onde saímos, era um ateliê de pintura. Agora lembrei porque me perdi, acho que fiquei terminando as pinturas que estávamos fazendo enquanto todos iam para outro lugar e a professora me falou para nos encontrarmos em algum outro lugar ali perto, que não encontro. Passo horas intermináveis procurando, indo e voltando, andando e vagando pelo lugar de mato e campo, em desespero no começo e depois em calma, pensando que alguém vai me encontrar. Fico ali com o gato e quando a calma chega, o grupo reaparece também. Amanda me pergunta onde eu estava e eu digo exatamente onde, mas não conto de ter me perdido nem o porquê. Ela me conta o que fizeram e que eu deveria ter estado lá. Não me lembro o que respondo nem se algum adulto se deu conta de eu estava perdida.]


Começo a fazer a volta e a contar os passos a cada dois, todos eles a cada dois, o que vai dar uma diferença na quantidade de passos da ida, mas provavelmente não muita. Penso que quando estiver chegando a 300 passos estarei perto. Começo a voltar e a bifurcação do monte de placas primeiro onde ficam os dois galões de lixo azul me traz um pouco de dúvida mas sinto com força que só pode ser pela direita e sigo à direita. Não reconheço um poste vermelho que parece um mini ponto de ônibus mas lembro que fui toda destemida na ida e deixei de prestar atenção aos pontos todos e pode ter sido só desatenção. Fui contando os passos displicente e intuitivamente – se é que isso existe – e que o que me tomou o corpo todo foi a sensação de que não parece a subida à esquerda ter sido aquela por onde eu vim.

Não pode ser.

Quando chego nessa bifurcação já dei 200 passos até a dúvida. Teoricamente faltam uns 148, mas sei que fiz uma contagem duvidosa na ida. Escolho o caminho da direita, com o mini ponto de ônibus vermelho. Parada na esquina a dúvida fica mas decido ir para o ponto vermelho e contando. Conto até o número 250, já indo rápido demais por um desespero da projeção da possibilidade já nem conseguir voltar ao ponto de referência último, o mercado-bar ou ainda o agrupamento de placas e os dois galões azuis.

Mas sigo. Sei que no passo 200 é o ponto de volta para as placas. Agora com possibilidade real de me perder, conto com exatidão, um número para cada dois passos. Medo porque pode haver mais bifurcações para a frente, (não eram duas? já não sei), aumentando em progressão os lugares por onde precisarei passar até me encontrar. Penso em como pode ser aquilo tudo ali no escuro, como não tenho o telefone e nem como avisar onde estou e que ninguém deve conhecer a casa "Brilho da Lua". Desespero se instala no corpo, nos passos e as contagens e as batidas do coração que na ida estavam tão simples e imperceptíveis começam a se mostrar de tão altos, rápidos e fortes. Só eles existem, não há pensamento, não há análise, há passos de ansiedade pelo futuro próximo.


Voltei e sabia que na esquina das placas era o número de passo duzentos e a subida em nada parecia com o caminho de ida, a perspectiva de volta e me arranca do tempo do espaço, olho para o caminho que fiz e é a primeira vez, uma merda de um bucolismo nisso também que pode caber aqui no texto desde que quem leia também não leia lá essas coisas, como eu não escrevo, mas é puro medo de qualquer ponto em que eu poderia não saber mais voltar a ponto nenhum. Sabia que poderia voltar ao mercado mas fazer o que lá? Que pergunta eu ia fazer? Vocês sabem onde é que fica o brilho da lua? Aquela casa de portão de madeira, igualzinha em porta a todas as outras, ia perguntar quando chegasse o desespero já quase chorando, não tinha o telefone da casa, não visei a ninguém que sairia, loucura, achei que era impossível me perder mas veja só, subestimei minha capacidade de esquecer, de me esquecer completamentede tudo, subestimei minha capacidade de não reconhecer e não ver os pontos de vista de outro ângulo ainda achando que são os mesmos. Subestimei minha incalculável, maravilhosa e ridícula capacidade de me perder.

[enquanto escrevo pensei num gravador ir fazendo com o gravador essa experiência de ir falando os pontos e voltar fazendo igual]

Teve também a borboleta branca na ida que foi saindo comigo quando saí do portão e quando estava em dúvida depois de ter ido até às casas e voltado e visto o ponto de ónibus vermelho que era a estaca que segurava o portão de outra casa e decidida a ir por cima mesmo quase sabendo que não era lá e que estava prestes a me perder para sempre, solta da superfície de referência onde é o universo das pessoas vi a borboleta branca, pra mim era a mesma, voltando da direção de onde era o mercado (ainda lembrava isso, ainda sentia o fio do mercado preso a mim, um fio e ele lá ainda cabia na minha memória curtíssima e mutante, meus pequenos pontos de referência) e a borboleta voltou pelo caminho à esquerda e para cima, acho que na ida nem reparei que havia aquela entrada porque ela fica para trás e resolvi seguir a borboleta branca, uma mãe e um filho vêm na minha direção no sentido do ponto de ônibus eu não entendi aquela subida, aquelas casas todas tão próximas pareciam um quintal, vários quintais, a estreiteza da estrada é que me indicou que não era ali e a borboleta me ajudou a ter certeza que era pra lá; já que não podia confiar em mim nem no meu julogamento nem no meu senso de direção, voltamos e vi mãe e filho, vindo de roupas vermelhas, acho que é por aqui voltando, alguns portões, aquela casa pra cima com letras azuis, uns brinquedos, percebi que tenho que olhar para o lado contrário ao que estou, para o lado por onde vou voltar, voltando e então aquele micro telhadinho da outra casa.


[pegava um elevador de qualquer lugar e chegava na casa da minha mãe na conversa da mesa estão todos almoçando e eu aqui Rodrigo pergunta se eu estou no facebook não estou depois eu conto pra vocês]

Aquele microtelhadinho, estou no número 273 e ainda não vejo a casa mas a estrada larga começa a se parecer exatamente com a estrada onde eu estava a largura da estrada, a proporção do meu corpo em relação à estrada. Quantos braços faltam? Onde está o sol? Escuto o barulho do rio, mas em vez dele aparecer ao longo de algum dos caminhos entre os quais eu precisava escolher, ele cruzava os dois e eu me perdendo de meu último e único ponto de referência, que eram os galões, o último fio que me ligava ao mercado e a algum lugar onde eu ainda podia sobreviver caso comçasse a escurecer.

[os medos das pessoas os sonhos recorrentes e terríveis de segurança as bruxas na conversa do almoço mas preciso escrever tudo antes que me esqueça porque dura tudo tão pouco]

Passo algumas coisas e volto e vou de novo, e já ando apressada demais. Leio o BRILHO DA LUA numa porta que nem se parecia com a porta que eu tinha visto na ida e vejo as letras ainda no número de passo duzentos. Chegar aqui e abrir o portão e não ter me perdido vagando na estrada me trouxe uma calma de alegria, estava viva. Respiro e vejo a Sara ainda no mesmo lugar, mexendo na mesma coisa como se nenhum tempo tivesse assado. A paz de conseguir chegar acaba com a vergonha de não ter sabido nem abrir e fechar o portão, entro em estado de alívio pensando em tudo que tenho que escrever correndo para não perder enquanto todos almoçam e conversam, eu preciso correr.

Eu me lembro dos sinais que vejo na natureza, conto com eles aqui como posso contar em casa, quando um bicho vai morrer no quintal, na janela e, dependendo do bicho, de como morre e quanto tempo demora, sei que tipo de caminho metafórico estou fazendo, num naipe de loucura mesmo. Se o mar está bravo ou manso, se o vento está forte ou fraco e pra onde vai, exercito a comunicação dos indícios com aquilo que mora no meu inconsciente para criar sinais que são exatamente a ponte com aquilo que sabe o caminho - minha máquina escondida de rápido esquecimento. Os bichos mortos e vivos me ajudam a encontrar e sair dos caminhos, bichos brancos, borboletas mínimas, gatos, minhocas que procuram sair da terra seca da fogueira. Ela sabe voltar, eles sabem. Conto com eles porque comigo não conto, não conto comigo porque não posso e sei, pelo menos não com essa que fica tentando lembrar e organizar as coisas intelectualmente, conto com todo o resto, conto com o fora.

A cachorra, que sempre segue todo mundo que vai pra rua, não foi provavelmente porque fiquei demorando demais na abertura/fechadura do portão, parecendo que eu não ia sair, que ia ficar ali, olhando pr' aquilo, tentando entender aquela complexidade que só é no desenho do que eu não sei. Exercício. Se ela tivesse ido, talvez fosse muito lógico voltar, ela indo na frente em algum momento, sabendo.

{Desenhos: fecho do portão, bifurcação, galões azuis, porta "brilho da lua", flores roxas, ponto de ônibus vermelho}