Mudanças entre as edições de "Luísa Nóbrega"

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(.terceiro dia.)
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== .terceiro dia. ==
 
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meu gravador é um tanto impróprio para a fala cotidiana, demasiado lento. o silêncio predomina, enquanto o gravador o pontua com falas escolhidas, depoimentos. o espaço da sala como o espaço de um confessionário. confessionário esse em que preparo as frases que soltarei ou nao em público. ouvir a própria voz gravada, inúmeras vezes.
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meu gravador é um tanto impróprio para a fala cotidiana, demasiado lento. o silêncio predomina, enquanto o gravador o pontua com falas escolhidas, depoimentos. o espaço da fala como o espaço de um confessionário. confessionário esse em que preparo as frases que soltarei ou nao em público. ouvir a própria voz gravada, inúmeras vezes.
 
a natureza nos aproxima vigorosamente de imagens que nos acostumamos a ver apenas com a distância segura dos planos bimensionais de videos e fotografias. nos arremessa, incautos, em meio a densa neblina. deitar-se numa pedra, depois de atravessar a água gelada de uma cachoeira, e tremer de frio, mal sentindo maos e pé, pequenas pontadas agudas nos maxilares.e tudo isso ser tao bom. nao sei dizer se esse tremor é fruto do frio apenas, ou de alguma espécie de comoçao violenta. deixar que as pedras nos aqueçam e que a água nos aplaine.
 
a natureza nos aproxima vigorosamente de imagens que nos acostumamos a ver apenas com a distância segura dos planos bimensionais de videos e fotografias. nos arremessa, incautos, em meio a densa neblina. deitar-se numa pedra, depois de atravessar a água gelada de uma cachoeira, e tremer de frio, mal sentindo maos e pé, pequenas pontadas agudas nos maxilares.e tudo isso ser tao bom. nao sei dizer se esse tremor é fruto do frio apenas, ou de alguma espécie de comoçao violenta. deixar que as pedras nos aqueçam e que a água nos aplaine.
  

Edição das 23h39min de 3 de fevereiro de 2012

.ventríloquo ou talvez tudo já tenha sido dito.

durante a residência, gostaria de dar um novo desdobramento às explorações que venho desenvolvendo a propósito de silêncio e da linguagem, e dos interstícios entre voz e palavra, da comunicação e de seus ruídos – tema que me toca de muito perto, uma vez que sou portadora de uma deficiência auditiva leve, precisando de aparelhos auditivos que tornem minha percepção mais próxima daquela que é considerada normal. Dessa vez, gostaria de explorar a relação com um aparelho tecnológico mecânico, simples: um gravador digital. Quais são os interstícios entre aquilo que desejaríamos dizer e aquilo que de fato dizemos? Entre aquilo que dizemos e a maneira como o outro o compreende? Será que a fala que dirigimos aos outros não é muitas vezes uma fala repetida, ouvida em algum lugar a que não sabemos dar nome? Em que medida nossa fala é a presentificação da fala de um Outro imaginário, ausente?

Hearing trumpet.jpg


.primeiro dia.

tentar entender o que tecnologia é. um assunto que em princípio deixo de lado como algo que nao me diz respeito. e no entanto, minha vida é mediada por próteses e aparelhos. vim para cá com apenas uma lente de contato e um aparelho auditivo. colecionando assimetrias. a correçao é imperfeita, mas de algum modo me basta. como se nao precisasse ver e ouvir demais. o que sao, afinal, as minhas próteses? às vezes nao sei se elas me fazem mais forte ou mais vulnerável. sao discretas, semi-invisíveis. quase silenciosas. a nao ser quando um braço, um rosto ou uma almofada de encontro ao ouvido fazem um apito soar, ou eu adormeço sem que as lentes descansem no soro e acordo com os olhos secos, avermelhados, ardidos. alguém me fala de satélites e cartografias. um texto fala da tecnologia como mimesis: fotografamos assim como os antigos criavam figuras rupestres. e eu me inventei um aparelho para falar como uso desde os três anos de idade aparelhos para ouvir. mas ainda nao sei usá-las, torno-me muda. meu invento é algo tosco, imperfeito. inventei uma prótese desengonçada, desnecessária, visível e explícita. que me perdoem as próteses sofisticadas, versáteis, quase infalíveis que mediam e filtram aquilo que vejo e ouço. a tecnologia transforma meu corpo e torna-o agudo.

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.segundo dia.

adentrar uma residência é, de certo modo, adentrar outro tempo. sobretudo quando se está distante da cidade. o dia todo, chovia. conversas sobre gênero, sexualidade e pornografia. sotaques, nomadismo. e enquanto os outros falam eu elaboro mentalmente respostas. quando tenho algo a dizer no gravador, os outros têm que aguardar enquanto faço os necessarios ajustes no gravador mecânicos. às vezes sinto taquicardias. todos prestam atençao excessiva às minhas falas gravadas: sou absolutamente responsável pelo que digo. sem volta. como se as palavras, distorcidas, granhassem peso demasiado. lembro-me da minha adolescência dolorosamente tímida. dirigir uma palavra aos outros, especialmente a homens desconhecidos, era de um esforço descabido. muitas vezes tenho que repetir as faixas, para que os outros compreendam: a responsabilidade torna-se maior ainda. penso em raspar os cabelos. reescrevo poemas antigos. quando cozinho, faço sempre uma quantidade de comida exagerada, descabida. wittgenstein, no seu diário, escreve: meus pensamentos quase nunca vêm ao mundo sem mutilaçoes.


.terceiro dia.

meu gravador é um tanto impróprio para a fala cotidiana, demasiado lento. o silêncio predomina, enquanto o gravador o pontua com falas escolhidas, depoimentos. o espaço da fala como o espaço de um confessionário. confessionário esse em que preparo as frases que soltarei ou nao em público. ouvir a própria voz gravada, inúmeras vezes. a natureza nos aproxima vigorosamente de imagens que nos acostumamos a ver apenas com a distância segura dos planos bimensionais de videos e fotografias. nos arremessa, incautos, em meio a densa neblina. deitar-se numa pedra, depois de atravessar a água gelada de uma cachoeira, e tremer de frio, mal sentindo maos e pé, pequenas pontadas agudas nos maxilares.e tudo isso ser tao bom. nao sei dizer se esse tremor é fruto do frio apenas, ou de alguma espécie de comoçao violenta. deixar que as pedras nos aqueçam e que a água nos aplaine.


Hearing aid.jpg

.quarto dia.

sentir-se completamente imerso nesse lugar, até além do pescoço. começando a compreender a lentidao e timidez do meu inconveniente gravador. enunciando decisoes em que venho pensando a dias - amanha corto os cabelos. vontade de deixar esse lugar com marcas permanentes. concretizar minhas imagens de pornografia e decidir que agora em diante quero experimentar um outro tipo de amor. a vida é tanta vezes uma farsa bem ensaiada, mas é possível encontrar alguma espécie de otimismo selvagem. quero quebrar xícaras, arremessar um copo contra a parede. ser contaminada pelas pessoas que estao aqui e por aqueles que encontrarei nos caminhos abertos â frente. "tienes que cambiar tu vida!" uma voz me repete incansavelmente.


.quinto dia.

o som da máquina passando pela minha cabeça e me raspando lentamente os cabelos. sim, a tecnologia pode tomar parte em nossos rituais inventados. trata-se de um diálogo de máquinas de espécies distintas. a que me atravessa o couro cabeludo tem umntoque suave que às vezes se torna pontudo e incisivo. a tecnologia, como qualquer linguagem, embora traiçoeira, pode ser subvertida. deixo que me atravesse o couro cabeludo com mudanças parcialmente irreversíveis. eu escutei inteiramente o tempo em que se deu essa passagem? as mudanças sao sempre um tanto invisíveis, percebo-as lentamente, aos poucos. a voz mecânica me interroga em um sotaque indistinguível e anônimo. sim, eu tenho escutado diferente (os ruídos um tanto mais evidentes, uma atençao maior às palavras dos outros, que reverberam por mais tempo, como coisas vivas). sim, às vezes eu também queria ser muda. eu nao tenho como te explicar. tenho prestado mais atençao aos meus dois pequenos aparelhos, fiéis mediadores. como a gente naturaliza facilmente aquilo que é artificial. ou talvez a idéia de natureza seja para nós totalmente utópica e inventada - ao menos enquanto existe linguagem. a linguagem tenta aplainar as ausências e faz com que elas se multipliquem, se tornem menos óbvias. as presenças sao menos óbvias. e, no entanto, acumulando nossas próteses, estamos vivos - e fazemos escolhas e apostas, e nos espantamos. a sensaçao indescritível do tecido das roupas roçando minha cabeça de fios pequeninos e pontiagudos. vou embora diferente de quando cheguei.


.sexto dia.

é o penúltimo, e eu nao acredito. sempre tenho a impressao que as coisas se dao em duas metades um tanto separadas e intocáveis: o começo e o fim. entre eles, as coisas se dao de modo inexplicável. os primeiros dias foram longos e cheios como semanas. mas eis que a semana termina bruscamente, e passa quase como um dia. eu com certeza passaria muito mais tempo aqui. vou embora num susto. sentindo que as coisas que estou investigando aqui, assim como os encontros com as pessoas, vao precisar ser retomados. ainda bem que ainda tenho amanha. para começar a conhecer aqueles que acabam de chegar. talvez haja algo de inesperado que ainda nao sei. cada dia aqui teve sua cor, e a de hoje foi a do desconcerto e incerteza. hoje meu gravador esteve bastante gago e um tanto indeciso.

Audiology1.jpg