Mudanças entre as edições de "Luísa Nóbrega"

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(.primeiro dia.)
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adentrar uma residência é, de certo modo, adentrar outro tempo. sobretudo quando se está distante da cidade. o dia todo, chovia. conversas sobre gênero, sexualidade e pornografia. sotaques, nomadismo. e enquanto os outros falam eu elaboro mentalmente respostas. quando tenho algo a dizer no gravador, os outros têm que aguardar enquanto faço os necessarios ajustes no gravador mecânicos. às vezes sinto taquicardias. todos prestam atençao excessiva às minhas falas gravadas: sou absolutamente responsável pelo que digo. sem volta. como se as palavras, distorcidas, granhassem peso demasiado. lembro-me da minha adolescência dolorosamente tímida. dirigir uma palavra aos outros, especialmente a homens desconhecidos, era de um esforço descabido. muitas vezes tenho que repetir as faixas, para que os outros compreendam: a responsabilidade torna-se maior ainda. penso em raspar os cabelos. reescrevo poemas antigos. quando cozinho, faço sempre uma quantidade de comida exagerada, descabida. wittgenstein, no seu diário, escreve: meus pensamentos quase nunca vêm ao mundo sem mutilaçoes.
 
adentrar uma residência é, de certo modo, adentrar outro tempo. sobretudo quando se está distante da cidade. o dia todo, chovia. conversas sobre gênero, sexualidade e pornografia. sotaques, nomadismo. e enquanto os outros falam eu elaboro mentalmente respostas. quando tenho algo a dizer no gravador, os outros têm que aguardar enquanto faço os necessarios ajustes no gravador mecânicos. às vezes sinto taquicardias. todos prestam atençao excessiva às minhas falas gravadas: sou absolutamente responsável pelo que digo. sem volta. como se as palavras, distorcidas, granhassem peso demasiado. lembro-me da minha adolescência dolorosamente tímida. dirigir uma palavra aos outros, especialmente a homens desconhecidos, era de um esforço descabido. muitas vezes tenho que repetir as faixas, para que os outros compreendam: a responsabilidade torna-se maior ainda. penso em raspar os cabelos. reescrevo poemas antigos. quando cozinho, faço sempre uma quantidade de comida exagerada, descabida. wittgenstein, no seu diário, escreve: meus pensamentos quase nunca vêm ao mundo sem mutilaçoes.
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== .terceiro dia. ==
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meu gravador é um tanto impróprio para a fala cotidiana, demasiado lento. o silêncio predomina, enquanto o gravador o pontua com falas escolhidas, depoimentos. o espaço da sala como o espaço de um confessionário. confessionário esse em que preparo as frases que soltarei ou nao em público. ouvir a própria voz gravada, inúmeras vezes.
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a natureza nos aproxima vigorosamente de imagens que nos acostumamos a ver apenas com a distância segura dos planos bimensionais de videos e fotografias. nos arremessa, incautos, em meio a densa neblina. deitar-se numa pedra, depois de atravessar a água gelada de uma cachoeira, e tremer de frio, mal sentindo maos e pé, pequenas pontadas agudas nos maxilares.e tudo isso ser tao bom. nao sei dizer se esse tremor é fruto do frio apenas, ou de alguma espécie de comoçao violenta. deixar que as pedras nos aqueçam e que a água nos aplaine.
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== .quarto dia. ==
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sentir-se completamente imerso nesse lugar, até além do pescoço. começando a compreender a lentidao e timidez do meu inconveniente gravador. enunciando decisoes em que venho pensando a dias - amanha corto os cabelos. vontade de deixar esse lugar com marcas permanentes. concretizar minhas imagens de pornografia e decidir que agora em diante quero experimentar um outro tipo de amor. a vida é tanta vezes uma farsa bem ensaiada, mas é possível encontrar alguma espécie de otimismo selvagem. quero quebrar xícaras, arremessar um copo contra a parede. ser contaminada pelas pessoas que estao aqui e por aqueles que encontrarei nos caminhos abertos â frente. "tienes que cambiar tu vida!" uma voz me repete incansavelmente.

Edição das 22h34min de 31 de janeiro de 2012

.primeiro dia.

tentar entender o que tecnologia é. um assunto que em princípio deixo de lado como algo que nao me diz respeito. e no entanto, minha vida é mediada por próteses e aparelhos. vim para cá com apenas uma lente de contato, nada mais do que um aparelho auditivo. colecionando assimetrias. a correçao é imperfeita, mas de algum modo me basta. como se nao precisasse ver e ouvir demais. o que sao, afinal, as minhas próteses? às vezes nao sei se elas me fazem mais forte ou mais vulnerável. sao discretas, semi-invisíveis. quase silenciosas. a nao ser quando um braço, um rosto ou uma almofada de encontro ao ouvido fazem um apito soar, ou eu adormeço sem que as lentes descansem no soro e acordo com os olhos secos, avermelhados, ardidos. alguém me fala de satélites e cartografias. um texto fala da tecnologia como mimesis, como se fotografássemos do mesmo modo como os antigos criavam figuras rupestres. e eu me inventei um aparelho para falar como uso desde os três anos de idade aparelhos para ouvir. mas ainda nao sei usá-las, torno-me muda. meu invento é algo tosco, imperfeito. inventei uma prótese desengonçada, desnecessária, visível e explícita. que me perdoem as próteses sofisticadas, versáteis, quase infalíveis que mediam e filtram aquilo que vejo e ouço. a tecnologia transforma meu corpo e torna-o agudo.


.segundo dia.

adentrar uma residência é, de certo modo, adentrar outro tempo. sobretudo quando se está distante da cidade. o dia todo, chovia. conversas sobre gênero, sexualidade e pornografia. sotaques, nomadismo. e enquanto os outros falam eu elaboro mentalmente respostas. quando tenho algo a dizer no gravador, os outros têm que aguardar enquanto faço os necessarios ajustes no gravador mecânicos. às vezes sinto taquicardias. todos prestam atençao excessiva às minhas falas gravadas: sou absolutamente responsável pelo que digo. sem volta. como se as palavras, distorcidas, granhassem peso demasiado. lembro-me da minha adolescência dolorosamente tímida. dirigir uma palavra aos outros, especialmente a homens desconhecidos, era de um esforço descabido. muitas vezes tenho que repetir as faixas, para que os outros compreendam: a responsabilidade torna-se maior ainda. penso em raspar os cabelos. reescrevo poemas antigos. quando cozinho, faço sempre uma quantidade de comida exagerada, descabida. wittgenstein, no seu diário, escreve: meus pensamentos quase nunca vêm ao mundo sem mutilaçoes.


.terceiro dia.

meu gravador é um tanto impróprio para a fala cotidiana, demasiado lento. o silêncio predomina, enquanto o gravador o pontua com falas escolhidas, depoimentos. o espaço da sala como o espaço de um confessionário. confessionário esse em que preparo as frases que soltarei ou nao em público. ouvir a própria voz gravada, inúmeras vezes.

a natureza nos aproxima vigorosamente de imagens que nos acostumamos a ver apenas com a distância segura dos planos bimensionais de videos e fotografias. nos arremessa, incautos, em meio a densa neblina. deitar-se numa pedra, depois de atravessar a água gelada de uma cachoeira, e tremer de frio, mal sentindo maos e pé, pequenas pontadas agudas nos maxilares.e tudo isso ser tao bom. nao sei dizer se esse tremor é fruto do frio apenas, ou de alguma espécie de comoçao violenta. deixar que as pedras nos aqueçam e que a água nos aplaine.



.quarto dia.

sentir-se completamente imerso nesse lugar, até além do pescoço. começando a compreender a lentidao e timidez do meu inconveniente gravador. enunciando decisoes em que venho pensando a dias - amanha corto os cabelos. vontade de deixar esse lugar com marcas permanentes. concretizar minhas imagens de pornografia e decidir que agora em diante quero experimentar um outro tipo de amor. a vida é tanta vezes uma farsa bem ensaiada, mas é possível encontrar alguma espécie de otimismo selvagem. quero quebrar xícaras, arremessar um copo contra a parede. ser contaminada pelas pessoas que estao aqui e por aqueles que encontrarei nos caminhos abertos â frente. "tienes que cambiar tu vida!" uma voz me repete incansavelmente.