Nadia Recioli

De wiki da nuvem
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Eu não sou Guarani Kaiowá

Não há o que entender
Não há o que interpretar
Há que se escutar calado
Há que se olhar atento
Aprender da troca
Mergulhar no abismo da diferença
Quanto mais troca mais vida
Comunicação é vínculo


Ao retornar ao meu não-território natal, ao universo hiperurbano e cosmopolita de São Paulo, depois de 2 anos de vida rural entre os Kaiowá na Terra Indígena Panambizinho em Dourados-MS, sinto absoluta necessidade de elaborar a bagagem afetiva e intelectual que trago dessa experiência. Sinto pulsar o desejo de levar adiante tudo o que pude compreender a respeito do fato de que eu nada compreendo.

Ter estado diante do sublime, incomensurável e incognoscível fato da existência daquilo que é chamado “uma outra cosmovisão”, é o meu motor e o meu freio. Faz-se necessário digerir e (re)significar o vivido, em um tempo de reflexão, estudo e meditação profundos, que nem o estar imersa na experiência em si e nem a posterior velocidade da vida paulistana me permitiram até agora.

É preciso mergulhar na memória em uma busca pela impossível compreensão e pela ainda mais impossível tradução para os meus iguais. Ao deixar Dourados, havia em mim um senso de responsabilidade em relação aos meu próprio “povo” e minha própria cultura. Se talvez a principal fonte do silêncio da sociedade envolvente perante o permanente atentado contra a vida do índio é justamente a hegemonia de um discurso que a priori nega a existência desse mesmo índio. É preciso dizer a todos que o índio existe, vive e é alguém de nosso tempo, e não um ser pertencente a um passado mítico. É preciso falar do índio e com o índio sem propagar ainda mais preconceitos e sem ser colonizador.

Mas cabe perguntar em que medida isso é possível. Cabe perguntar em que medida é possível fazer qualquer afirmação que seja sobre o outro, sobre a cosmovisão do outro, sobre a cultura do outro. Como é possível saber o outro? Quando então parece tão “fácil” e tão tentadoramente “lógico” entender a cultura do outro através do olhar antropológico dos estudiosos que pertencem à minha própria cultura, algo me soa perturbador. Me soa perturbador que toda a complexidade de uma cultura, com toda mutabilidade inerente a qualquer cultura, seja algo passível de ser estudado e descrito em livros.

Estar entre os Kaiowá foi para mim a experiência da alteridade absoluta. Me dar conta de que não posso (e em um certo sentido nem devo) “entender” sua verdade, sua religiosidade, sua ética, sua justiça, suas atitudes, sua percepção de “natureza”, simplesmente porque não partilho dos mesmos fundamentos de existência. Trata-se de realidades absolutamente distintas, porém sobrepostas e com intersecções.

Aceitar a diferença a esse nível de radicalidade é algo extremamente difícil. Nos sentimos tentados o tempo todo a “interpretar”, “analisar” e “julgar”, obviamente nos pautando pelos nossos próprios critérios de “verdade”, de “correto”, de “aceitável”. E nesse sentido, mesmo quando somos muito bem intencionados, a nossa verdade parece sempre um pouco mais verdadeira do que a dos outros povos, como se não fosse apenas mais uma interpretação possível do real. E aqui a palavra “nós” se refere a quem quer que seja que se ponha no lugar do sujeito da enunciação do discurso. Se refere à atitude frequentemente colonizadora.

No entanto, algumas coisas eu sei, porque experimentei e vivi corporalmente. E isso complexifica ainda mais a questão. Sou testemunha de muita coisa. Carrego versões mais “verdadeiras” para alguns fatos mal contados e mal interpretados. E daí um sentimento de “responsabilidade” que me assola e perturba.

Os Guarani e Kaiowá, tal qual todas as populações indígenas, precisam hoje, em um planeta totalmente mapeado e transformado em mercadoria, ser ouvidos e vistos. E “ouvir” e “ver”, aqui, diferem completamente de “interpretar”. Estar diante da outra cosmovisão é estar diante de um questionamento categórico da própria concepção de “realidade” e de “verdade”. E por isso o índio “deve morrer”, pelo ponto de vista dessa sociedade sempre condescendente com o genocídio que provoca. E, se sabemos bem da responsabilidade histórica que a sociedade não índia tem sobre as mazelas que as sociedades indígenas herdaram do processo colonial, frequentemente esquecemos da responsabilidade atual que temos sobre as mazelas que vivem cada uma das pessoas indígenas hoje. Precisamos, agora, deixar a morrer um pouco a nossa maneira arrogante de conceber (e colonizar) o mundo.

A Palavra-Alma


[Os grupos chamados guarani] consideram a gravidez como resultado do ato de ter sonhado a palavra, portanto um ato mais lógico do que fisiológico. O humano é, assim, “palavra sonhada de Deus” (Melià, 1992, p. 279-280). Por ocasião do nascimento, a palavra senta-se e provê para si um lugar no corpo da criança. Cada pessoa é, assim, uma encarnação da palavra divina, ayvu, ñe’ẽ. Estando prestes a nascer uma criança, o Verdadeiro Pai e a Verdadeira Mãe das palavras-almas dizem à palavra-alma que vai se encarnar: “Então, vai à terra, meu filho (minha filha); lembra-te de mim no teu ser ereto, e farei a minha palavra circular pelos teus ossos para te lembrares de mim” (Cadogan, 1950b, p. 88). No ser ereto se faz alusão à palavra original, pois o Criador ergueu-se e concebeu a linguagem. A palavra divina é o que mantém em pé, o que humaniza; porque ela circula pelo esqueleto humano (Cadogan, 1959, p. 19). (in CHAMORRO, 2008, 193)


A palavra-alma é a essência e o fundamento do ser, para os Guarani. A palavra é imbuida de divindade (é a porção de sabedoria divina do humano) e, portanto, tem poder. É sagrada.

A palavra profanada (talvez justamente porque emitida e replicada em excesso redundante) do discurso colonizador também tem poder. É através dela e de de seus enunciados de verdadeiro e falso, existente e inexistente que populações indígenas inteiras têm sido dizimadas. É com o dizer e o calar sobre as populações indígenas que exercemos todo o poder de destruição.

Quero falar com as populações indígenas. Com, no sentido de ao lado de. E quero dizer o indígena no sentido de ele existir sempre e atualmente em todos os contextos.

Quero encontrar em mim o que resta ainda da Palavra-Alma e divina. O que resta ainda de sagrado no meu dizer e o poder de minha própria palavra. Quero pronunciar o discurso que seja no universo o ato de costurar, rasgar e re-emendar as camadas do real. Quero saber o que de Kaiowá emerge em mim sem apropriações nem vaidade. Quero meu próprio rito.

Minha palavra é muda

Foi também entre os Kaiowá Guarani que aprendi que para tudo existe um tempo. E que o tempo das coisas não é o tempo do planejamento e dos prazos. O caminho até a Nuvem foi todo permeado de neblina. No Guarani, Jasuká. O princípio feminino, origem do Universo.

Ela é a origem de todas as coisas, inclusive do Ser Criador e das demais divindades (Schaden, 1974, p. 110). O Ser Criador surge, nasce, descobre-se a partir Substância Mãe e cresce mamando na flor, no seio, de Jasuka. Essa idéia aparece repetidamente nos cantos e relatos cosmogônicos. Cadogan vai mais longe e chega a pensar, a partir do paralelismo entre “flor” e “seio” na linguagem sagrada dos Mbyá, que Jasuka é a “mãe universal” dos Guarani (Cadogan, 1962, p. 47).

Ao chegar, assumi a organicidade do tempo. Descansei, fui com Ines à cachoeira. Vimos muita neblina no caminho e novamente penso em Jasuka. Chovia. Há dias, disseram.

Eu que vi incontáveis vezes os Guarani rezarem para chover e para parar de chover, rezei pelo sol. Ele veio e ficou.

Meu primeiro dia na Nuvem coincidiu com a noite do Jerosy Puku (grande dança-reza) em Panambizinho. Parte de mim queria estar lá. Outra parte precisou compreender que o momento é de revisitar e tentar juntar as peças do quebra-cabeças da memória. Estar diante dos vídeos e fotos que estavam no meu HD me mostrou o quanto não é simples esse mergulho. A palavra gravada e a imagem técnica filmada também tem poder. E coisas sagradas usadas em contextos errados podem se perverter em feitiço.

A proposta inicial era selecionar imagens e videos e mostrá-las aos parceiros na Nuvem, gravando em áudio seu discurso pronunciado sem parar e sem pensar diante das imagens-alma dos Kaiowá. Não foi fácil. Meu excessivo cuidado e carinho e delicadeza com o material, meu ainda-não-saber como lidar com ele da maneira correta, a falta de vínculo com a maioria dos colegas de residência, tudo isso dificultou muito o processo. O caminho para talvez fosse outro. Se comunicação é vínculo eu talvez fosse preciso primeiro silenciar. Buscar o ritual dentro de mim.

Meu próprio rito

Primeiro experimento de cura e rito alternativo


Território (no sentido de tekoha o lugar onde posso ser quem sou) e poder ritual da palavra e do gesto corporal são aspectos que vi entre os Kaiowá e que sinto faltar em mim. Mas como encontrá-los ou construí-los para mim mesma? Mal habito minha própria pele no mundo mediatizado em que me constituí. A capacidade de manipular o real no sentido de "enfeitar o mundo" (ombojegua) e também a si mesmo é o que de mais profundamente verdadeiro e mágico percebo e aprendo com os Kaiowá. Assentar sempre e novamente a Palavra-Alma em si mesmo é o caminho de cada ser e a noção mais verdadeira de cura que posso conceber. Mas também cabe perguntar em que medida tudo aquilo que conhecemos como "verdade científica" não são também efeitos de um discurso mágico que constrói realidades segundo o que nos dispomos a acreditar.

A partir dessas reflexões realizei na Nuvem o primeiro experimento ritual de cura, formulado a partir dos meios que me estavam ali disponíveis. Através da técnica da autohemoterapia posso retirar e devolver a mim meu próprio sangue, restabelecer e assentar de volta a minha essência, praticando assim um ato mágico-científico e eficaz de cura.

Referências

CHAMORRO, Graciela. Terra Madura Yvy Araguyje: Fundamento da Palavra Guarani. Dourados: UFGD, 2008
RECIOLI, Nádia. De tudo aquilo que não sabemos. In Revista Urbânia 5. São Paulo: Editora Pressa, 2014